AR-10 Parte 1

O AR-10 foi e continua sendo um grande fuzil de batalha. Ao contrário do que se pensa, não era um fuzil ruim, sendo inovador em vários pontos. Nasceu predestinado a ter sucesso de uma forma ou de outra. Quando lançado e amadurecido em 7,62 x 51 mm, se mostrou um grande fuzil de batalha provado em combate. Mas era o tempo da mudança para o calibre 5,56 x 45 mm. Foi um sucesso por ter servido de modelo para a família M16 que se transformou no sucesso mundial. Por pouco o M16 nunca existiu, assim como o AR-10. Mas foi a base para o sucesso que o M16 é até os dias de hoje, assim como outros fuzis derivados desse sistema.

 

Nasce a ArmaLite

Não há como contar a história do AR-10 sem contar a história da ArmaLite. Esta nasceu como uma subdivisão da Fairchild, a mesma empresa que fazia aviões (dentre eles o belo C-123 Provider). A decisão de criar a empresa tinha um motivo simples. No começo dos anos 50, estava ocorrendo o boom dos investimentos em tecnologias visando os programas militares em virtude da saudosa Guerra Fria. A Fairchild investia pesado em pesquisas e desenvolvimentos por ser uma empresa aeronáutica. E como tal, tinha acesso a novas formas de produção, assim como a obtenção de novos materiais para o emprego em seus projetos aeronáuticos.

Dentre os materiais, havia fibras de plásticos, plásticos de alta resistência, ligas de alumínio de grande resistência e durabilidade. Além disso, havia ainda processos de produção considerados modernos, facilitando a produção, com menos tempo e menos dinheiro para peças de emprego aeronáutico. A ideia da criação da ArmaLite era justamente essa. Usar esses materiais e processos de produção aeronáutica para armas de fogo. Em 1954 surgia a ArmaLite.

De início a ArmaLite tinha em mente o mercado civil de armas de fogo, mas a estratégia mudou com o AR-5, uma pequena carabina de sobrevivência calibre .22 hornet com ação de ferrolho. Embora avaliada, selecionada e comprada pela USAF, o nº de carabinas foi menos de 20 unidades por questões orçamentárias. Isso não foi um balde de água fria para a ArmaLite, uma vez que eles viram que eles tinha tecnologia e ideias que poderiam fornecer contratos maiores com os militares, que garantiria um retorno financeiro maior que o mercado civil. Eles nem imaginavam que fariam um dos fuzis mais fabricado no Ocidente no futuro.

Carabina AR-5.

Alguns dos fundadores da ArmaLite estavam visitando um stand de tiro na Califórnia quando se depararam com um atirador disparando um fuzil semiautomático diferente e novo. O fuzil usava o calibre 7,62 x 63 mm. Ao perguntarem ao atirador de onde vinha esse fuzil, ele lhes respondeu que ele mesmo havia feito o fuzil em sua casa. O fuzil adotava o sistema de trancamento por ferrolho rotativo com ressaltos, usando o sistema de pistão de curso longo, como no AK-47, onde o pistão é fixo ao transportador do ferrolho. Esse atirador era Eugene Stoner, onde foi contratado em pouco tempo como engenheiro chefe da ArmaLite.

Note que se esse encontro jamais tivesse ocorrido, hoje não teríamos o M16.

Stoner já tinha outros desenhos de fuzis, todos protegidos por patentes que foram usados na ArmaLite. Um deles era o modelo M7 que foi desenhado por Stoner antes dele ir para a ArmaLite. Designado como AR-3, o fuzil tinha caixa da culatra em liga de alumínio. Usava o trancamento do ferrolho por ferrolho rotativo com ressaltos. O corpo da arma não era de madeira e sim de fibra de vidro que tinha a cor semelhante à madeira. Isso tornava o fuzil mais leve. Este modelo serviu somente como protótipo.

AR-3.

M8

Com base nessas ideias, novos materiais e novos métodos de produção, os engenheiros decidiram desenvolver um fuzil de batalha moderno. E a ajuda de Stoner foi decisiva para que isso acontecesse. Antes de ser contratado pelo ArmaLite, ele havia desenhado um projeto de fuzil de assalto muito influenciado pela metralhadora leve de Johnson de 1944. Tratava-se do modelo que serviu de base para o M8. Era um fuzil a gás, com um êmbolo que ficava ao lado esquerdo do cano e ia diretamente para o transportador do ferrolho. A mola de recuperação ficava dentro da caixa da culatra, sendo que o grupo do ferrolho se deslocava dentro da coronha tubular. O calibre desse modelo era o 7,62 x 63 mm. Esse modelo era feito com metal estampado.

A escolha desse calibre se devia porque, como civil, ele tinha acesso maior aos carregadores do BAR, assim como já estava familiarizado com o calibre usado no Garand M1, uma vez que Stoner havia lutado na guerra da Coreia. Que fique claro, muita gente pensa que Stoner nunca fora militar e muito menos lutado numa guerra. E falando em carregador, o retém do carregador, ambidestro, ficava dentro do guardamato com a tecla na frente do gatilho. A alavanca de manejo ficava no lado direito e o seletor de disparo no lado esquerdo acima da empunhadura.

M8.

A influência matriz da metralhadora leve de Johnson foi o ferrolho rotativo com ressaltos. Esse meio de trancamento era simples e eficaz. Os ressaltos do ferrolho passam por saliência da câmara do cano. Ao passa, o ferrolho é virado para um dos lados. Os ressaltos travam com o lado oposto das saliências, travando o ferrolho no cano. E o modelo M8 adotava um sistema de gás diferente, o uso direto do gás. Nos meios tradicionais, o gás captado no êmbolo comprime um pistão, podendo ser longo ou curto. É o uso indireto do gás porque no meio tem uma peça. Stoner fez o uso direto do gás. O gás é usado diretamente no transportador do ferrolho. Não existe um pistão como intermediário. A invenção não é dele mas a forma como é usado é completamente dele.

Após o disparo, os gases captados pelo êmbolo vão diretamente para o meio do transportador do ferrolho, na base final do ferrolho. Os gases comprimem o ferrolho, o rotacionando para a esquerda e destravando ao passo que, em seguida, ele começa o movimento de retrocesso, ejetando automaticamente a cápsula usada. Ao chegar ao final do ciclo, a mola recuperadora o pressiona para frente, empurrando um cartucho novo para câmara do cano. O ferrolho é rotativo porque ele gira no seu eixo longitudinal nesse momento. Os ressaltos do ferrolho passam pela base do cano. Então o ferrolho é girado (rotacionado) para a direita, travando os ressaltos na base do cano, travando então, o ferrolho. É por isso que chamamos de ferrolho rotativo. O próprio transportador do ferrolho e ferrolho acabam funcionando como pistão para os gases.

Esse modelo era um simples protótipo para demonstrar que a ideia funcionava. Ele era, digamos, mais espartano. Tanto é que eles usavam o calibre 7,62 x 63 mm em virtude de ser mais acessível e porque o projeto já estava dimensionado para esse calibre. Era o que Stoner tinha ao seu alcance como civil. E foi um belo feito para quem fez todo o projeto em casa. De forma clara e cristalina podemos dizer que o pai do M16 não é o AR-10 mas sim o modelo M8 de Stoner. Porque todos os princípios básicos e layout do fuzil estão no M8.

 

AR-10

Ainda em 1955 Stoner fez um segundo protótipo de fuzil. Agora, pela primeira vez ele é chamado de AR-10 e passa a usar o calibre 7,62 x 51 mm. Não era à toa, era o calibre que o mundo estava adotando como padrão, assim como os aliados dos EUA. Na época era o novo calibre referência do mundo ocidental.

Mantinha alguma coisa do M8. Retém do carregador ambidestro e alavanca de manejo no lado direito. Mas não tinha as miras fixas. Foi colocada uma mira telescópica com base na mira usada pelos alemães na 2º G. M.. Essa mira também servia como alça de transporte. Mas como era um protótipo, não se esperava o transporte por essa alça, pois a mira se soltaria facilmente com o tempo. O AR-10A mantinha a caixa da culatra em material estampado, mas agora agregava empunhadura, coronha e guardamão em fibra de vidro.

Primeiro protótipo AR-10.

Outra novidade foi a tampa da janela de ejeção. Já pensando no uso árduo contra terra e pó, eles adicionaram uma tampa que cobria a parte de cima da caixa da culatra. Ao acionar a alavanca de manejo, essa tampa se abria, expondo a janela de ejeção. A mola recuperadora passa a ficar na coronha. Assim como no M8, o seletor de disparo ficava no lado esquerdo.

 

AR-10A

A equipe de Stoner altera um pouco o layout do fuzil no terceiro protótipo do fuzil, passando a ser chamado AR-10A. De cara notamos a alça de transporte que marcará toda a família M16. No AR-10 foi notado que carregar o fuzil segurando a mira trazia muita versatilidade para o transporte do fuzil quando não se usava a bandoleira. Isso foi percebido e adicionado no AR-10A. A alça de mira passa a ser alojada na alça de transporte. Curiosamente não existe mais a tampa que protege a janela de ejeção. Visando diminuir o peso do fuzil, eles decidem algo ousado. O cano é revestido por uma camada de liga de alumínio enquanto que o interior era feito de uma camada mais fina de aço. Isso realmente deixava o fuzil mais leve. A alavanca de manejo ainda permanecia no lado direito, mas na parte de cima da caixa da culatra. A caixa da culatra podia ser solta em duas partes, em cima e embaixo. O retém do carregador e o seletor de disparo permaneciam no mesmo lugar.

Uma característica importante que acompanha até os dias de hoje com a família M16 são os orifícios do ferrolho. O uso direto do gás gera, necessariamente, uma maior quantidade de gases no êmbolo, o que gera uma maior pressão no tubo de gás que, por sua vez, gera uma força maior contra o transportador do ferrolho e ferrolho. Esse excesso de gás é expelido por pequenos orifícios no lado direito do ferrolho, expulsando esse excesso de gás pela janela de ejeção.

AR-10A Protótipo.

Outro ponto que chama a atenção é o grande quebrachamas que também funciona como compensador. Esse dispositivo tornava a arma mais controlável e precisa. Em rajadas curtas, o soldado podia fazer bom uso da arma sem ela levantar tanto. Mas mesmo com esse dispositivo o soldado perdia o controle quando a arma disparava em rajadas maiores que cinco disparos.

O fuzil já estava mais amadurecido e no final de 1955 ele é apresentado ao exército. Era apenas um modelo e, como esperado, apresentou alguns problemas, na maioria dos casos problemas por alimentação. O exército ficou impressionado com a leveza e simplicidade do fuzil, o que fez despertar interesse nesse modelo. Era justamente quando ocorria a seleção do novo fuzil que substituiria o Garand M1, seleção esta já em andamento. A Ordnance Corps., órgão responsável pelo suprimento de material bélico para o exército, fez uma proposta. O AR-10A era um produto não seriado, feito com poucos recursos. A Ordnance Corps se oferece para financiar todo o programa do AR-10 em troca de ter os direitos do fuzil final caso fosse comprado pelo Exército. Essa proposta foi rejeitada pela ArmaLite. Isso serviu de incentivo para que a equipe de Stoner continuasse no caminho e fizesse um modelo mais aprimorado.

 

 AR-10B

A ArmaLite faz algumas alterações no AR-10A visando concorrer na seleção para o substituto do M1 Garand. Aqui pela primeira vez vemos a alavanca de manejo ambidestra na parte de cima da caixa da culatra. Nessa posição a alavanca era acionada facilmente por qualquer uma das mãos. Além disso, o soldado não teria o risco de a alavanca prender em alguma correia ou algum obstáculo. Visando maior resistência ao cano, eles usam uma liga de alumínio mais resistente que envolvia o cano de aço. A tampa da janela de ejeção é colocada de novo. O fuzil pesava apenas 3,2 kg.

AR-10B.

Este novo fuzil faz parte do processo de escolha do substituto do MI Garand, da qual participavam a Springfield com o T44 e a FN com o T48, uma versão do FAL. O AR-10B apareceu repentinamente na seleção, onde foram feitos apenas cinco fuzis para testes. Infelizmente o AR-10B não foi um sucesso. Houve alguns problemas sérios com o quebrachamas. Com o tempo de disparo, ele tendia a acumular sujeira e as chamas eram mais pronunciadas. Depois a peça simplesmente quebrava. O tubo de gás passava por mais problemas, após vários disparos, entortava e depois se soltava. E o ejetor quebrava com certa facilidade.

Em cima o T44 e embaixo o T48.

A equipe mudou o material dessas partes de aço para liga de aço. O fuzil respondeu bem em seguida. O fuzil com o novo quebrachamas continuava controlável, não havia mais problemas de quebras e panes. Mas em baixíssimas temperaturas as partes internas congelavam em virtude do material usado para lubrificação. Mas o pior estava por vir.

Nos testes de resistência de disparo, um acidente sério aconteceu. O cano simplesmente explodiu para o lado esquerdo, onde por pouco o atirador não perde a mão. Os testes foram paralisados imediatamente. Técnicos concluíram que o cano era muito fino, mesmo sendo de aço e revestido por liga de alumínio. Mostrou-se frágil e não tardou para o material ceder. Em uma semana a ArmaLite forjou novos canos de aço e o AR-10B voltou para os testes. Não foi registrado nenhum incidente de disparo e superou a fase de resistência. Mas o estrago já estava feito. Em fevereiro de 1957 o fuzil fora desclassificado da concorrência

Cano danificado do AR-10B. Note o cano de aço, as camadas de alumínio e de material plástico.

O problema maior é que o AR-10B surgiu muito rápido e participou do processo de seleção praticamente incompleto. Ainda lhe faltava maturidade de pesquisa e testes. O cano fino de aço, junto com a camada de liga de alumínio se mostrava inadequado porque o fuzil não tinha o resfriamento necessário. Sob altas temperaturas e pressões, a liga de alumínio tende a literalmente quebrar, cedendo mais fácil. Outro problema é que para que o fuzil fosse completamente satisfatório, seriam necessários mais três anos de pesquisa e desenvolvimento, o que era impossível uma vez que o processo de seleção do fuzil substituto do M1 Garand já estava na reta final e os candidatos, assim como o Exército, não poderiam parar o processo por 3 anos para ajudar um outro candidato. O processo terminara em 1957 com o T44 vencedor, sendo denominado M14.

Mas uma vantagem do AR-10 e que perdura até hoje na família M16 é a administração do recuo, que foi observado contra os modelos T44 e T48. O AR-10 adota a linha reta de layout, ou seja, o cano, a caixa da culatra e a coronha estão alinhados em uma linha imaginária reta. Os outros fuzis, T44 e T48, tinha uma curva nessa linha por causa da coronha que se direcionava para um plano mais baixo se comparado com o cano e a caixa da culatra. O layout reto faz com que a arma não suba tanto no momento do disparo, se comparado com fuzis convencionais, que tendem a subir mais por causa dessa curvatura da coronha.  Isso se dá porque a energia do recuo é jogada diretamente no ombro do soldado. Com fuzis com coronha convencional, a energia é jogada para cima pela curva e desnível que a coronha tem em relação à caixa da culatra e cano.

AR-10B.

A primeira vez que isso foi notado com mais clareza na metralhadora leve alemã FG42. Anos mais tarde, os ingleses fizeram o mesmo com o inglês E.M.2. A linha reta tendia a diminuir o levantamento da arma.

 

Curiosidade

Não há como não comparar o AR-10 com o inglês E.M.2. São duas armas completamente diferentes por dentro. Completamente diferentes no layout. Por terem um layout reto, as miras precisar ser mais altas, pois a coronha não tem a curvatura tradicional dos fuzis de assalto. Os primeiros modelos do AR-10 não tinham alça. A única parte em que o fuzil de assemelha é a alça de transporte do E.M.2 que, sem dúvida alguma, serviu de inspiração para Eugene Stoner. Mas de resto, são armas completamente diferentes.

E.M.2.