AK-47 – Origens II

A Segunda seleção

Com o falecimento de Sudaev e o cancelamento da primeira seleção, as equipes tiveram mais tempo para se reorganizarem Em virtude das fases e da quantidade de participantes no processo de escolha, aqui dividiremos o processo em duas partes para uma melhor compreensão.

Sudaev.

 

1946 – Novos Requisitos

Diante do novo panorama, os soviéticos trabalharam em cima de quatro pré-requisitos, quais eram: maneabilidade; capacidade de disparo; desempenho balístico do projétil e precisão.

Para a maneablidade, se levava em conta o peso da arma, a ergonomia dos comandos do fuzil, a desmontagem, limpeza e a manutenção. Desta forma, os soviéticos estipularam que o fuzil para o soldado regular não poderia ter mais de 1.000 mm de comprimento. A coronha deveria ser fixa e a baioneta a mesma faca de combate. Já tropas especiais e oficiais poderiam usar uma versão com coronha rebatível. Isso tudo deveria ser levado em conta com o soldado carregando entre 200 e 300 cartuchos. Com esse arranjo e os demais apetrechos de equipamento e vestimentas, o soldado deveria ser apto a disparar em posições diferentes, como de pé, abaixado, ajoelhado e deitado.

Capacidade de disparo. Aqui os soviéticos avaliaram não só a cadência de disparo, mas a eficácia do fuzil quando usado de forma comum, a capacidade do carregador, o nº de falhas, como eram os disparos em semi e em automático. Um dos requisitos dos soviéticos era o seguinte. O soldado deveria realizar 100 disparos em menos de um minuto contra alvos entre 300 e 400 metros. Os alvos ao todo eram 35 e o soldado deveria acertar ao menos 12 alvos. Esse exercício se destinava a preencher a filosofia de emprego soviética, na qual vários soldados atirariam ao mesmo tempo sobre alvos pré-determinados, fazendo com que houvesse uma grande densidade de fogo. Essa filosofia já era empregada na 2ª S. G., com a PPSh-41 e PP43, entretanto de forma mais limitada pelo alcance.

Soldados soviéticos com a PPSh-41 e PPS-43. O assalto rápido e o alto poder de fogo era um dos principais requisitos do programa de fuzil de assalto soviético.

Desnecessário dizer que isso nunca foi atingido. Não só pela arma em si, mas pelo treino do soldado. O soldado soviético mediano não tinha o mesmo treino que o soldado ocidental mediano, na qual estes disparavam mais em treinos de maior duração. Os soviéticos também inventaram uma nova modalidade de emprego no regime automático e isso é de suma importância neste contexto. A instrução era usar rajadas curtas de 3 a 5 disparos ou, no máximo, entre 5 a 10 disparos para fogo de apoio. Isso é importante porque quanto maior a quantidade de disparos, mais incontrolável fica a arma, que por sua vez gera uma grande dispersão dos projéteis. E com o tempo viram que tanto o AK-47 como qualquer outra arma no calibre 7,62 x 39 mm se torna incontrolável em rajadas longas. A balística e a precisão seriam provadas nos testes específicos para isso, já que uma está ligada a outra.

Aqui necessitamos de uma divisão. Abordaremos esse processo em duas partes. A intenção é justamente explicar e não complicar.

 

Primeira Parte

Recordam-se que da história de que o AK-47 competiu quase que sozinho? Pois bem, o NIPSMVO estabeleceu que antes de mais nada, as equipes deveriam mandar para avaliação primeiramente os esboços e desenhos técnicos antes de qualquer protótipo. Isso era para evitar que o programa se estendesse, se perdesse tempo analisando armas que não seriam funcionais e assim economizaria tempo e dinheiro no processo de avaliação, que já estava atrasado. No começo da seleção do novo fuzil, nada menos que 16 (dezesseis) equipes mostraram seus desenhos e projetos. Eram eles: Polyakova, Bolshakova, Vladimirov, Degtyarev, Degtyareva, Kubynov, Dementieva, Sulaev, Rukavishnikov, Baryshev, Kalashnikov, Korovin, Korobov, Bulkin, Simonov e Efimov.

Após a análise de todos os projetos, em meados de 1946 foi pedido a 10 equipes que dessem prosseguimento aos seus trabalhos. As outras 6 foram retiradas do processo de seleção em virtude de não atingirem os requisitos mínimos e desaprovadas na análise inicial. Em outubro de 1946 as empresas mandaram agora seus desenhos técnicos exatos, medidas, capacidades e parâmetros para análise. Diante desses dados, a equipe de seleção decidiu por manter os projetos de Rukavishnikov, Kalashnikov, Korobov, Baryshev, Bulkin e Dementyev. As outras equipes foram cortadas. Os projetos que mais agradaram os avaliadores foram de Rukavishnikov e em seguida o de Korobov.

Simonov. Praticamente nada se sabe dessa arma.
Korovin. Praticamente nada se sabe dessa arma. Apenas que ela atirava somente no automático.
Efimov. Praticamente nada se sabe dessa arma.
Kubinov. Essa foi uma das primeiras armas a ser apresentada. Praticamente nada se sabe dessa arma.

Neste ponto, Mikhail Kalashnikov, forma a sua equipe de trabalho. Ao contrário dos outros, Kalashnikov não se importa de analisar outras armas, mesmos que estrangeiras, para criar seus desenhos. O fato de ele ter se inspirado em outras armas foi o que fez nascer a lenda do AK-47. Por exemplo, o ferrolho rotativo do AK-47 é fortemente influenciado pelo ferrolho rotativo do M1 Garand americano. O grupo do gatilho é do fuzil checo ZH-29. Mas de onde isso tudo? Ao chegar ao polígono (termo usado pelos soviéticos para campos de testes) de Schurov, Kalashnikov pode entrar em contato com o museu na qual continha uma grande coleção de armas soviéticas e estrangeiras. Havia de tudo, inclusive armas estrangeiras novas, como o M1 garand e StG44. Uma forma de ganhar tempo era simplesmente estudar essas armas e copiar algumas soluções.

 

Korobov TKB-408

Ao contrário do que se pensa, ele não foi o primeiro fuzil de assalto bullpup soviético e sim o Prilutisky de 1944. De cara também era inovador, mas apresentava algumas desvantagens. O seu êmbolo e pistão ficavam acima do cano. Entretanto, a mola recuperadora ficava posicionada abaixo do cano, com a base da haste ligada ao transportador do ferrolho. Uma vez armado o fuzil, a cada disparo a alavanca de manejo também permanecia imóvel.

TKB-408.

Uma inovação no segmento dos fuzis de assaltos soviéticos foi a janela de ejeção. Ela tinha uma tampa contra sujeira e pó. Ela ficava fechada e se abria ao primeiro disparo, mantendo-se aberta. Isso vinha dos projetos alemães da guerra. Outra inovação, mas não tão boa, era a trava do fuzil. Ficava dentro do guarda mato à frente do gatilho. Essa solução foi adotada mais tarde pelo francês FAMAS.

TKB-408.

TKB-408

Calibre: 7,62 x 41 mm
Comprimento total: 790 mm
Peso: 4,3 kg
Carregador: 30 cartuchos

 

Bulkin AB-46

Este fuzil também era operado a gás com o pistão e êmbolo acima do cano, mas tinha algumas coisas diferentes que mais tarde foram copiados por Kalashnikov. A parte de cima da caixa da culatra era uma tampa destacável, que facilitava a manutenção e limpeza. Nessa parte da arma estava a haste que segurava a mola recuperadora. O pistão era uma peça que era unida com o transportador do ferrolho, onde também se tinha a alavanca de manejo solidária ao transportador do ferrolho. Tais como os outros, ela não se movimentava a cada disparo.

AB-46.

Uma diferença interessante. Dentro da caixa da culatra havia ranhuras que faziam movimentar o transportador do ferrolho quando se movimentava. O transportador do ferrolho tinha encaixes que acoplavam nessas ranhuras. Isso simplificava a arma tanto para produzir como para manter. Sem falar que diminuía o custo de produção.

AB-46. Note o pistão preso ao transportador do ferrolho.

AB-46

Calibre: 7,62 x 41 mm
Comprimento total: 970mm
Comprimento total com a coronha rebatida: 763 mm
Peso: 4,4 Kg
Carregador: 30 cartuchos

 

Rukavishnikov AP-46

O projeto AP-46 tomou como base para seu layout o PPS-43 (criado por Sudaev). Em cima desse projeto foi que trabalharam em cima dos requisitos. Seguindo a lógica das armas anteriores, o êmbolo e o pistão estavam localizados abaixo do cano, onde o pistão era ligado ao transportador do ferrolho. O ferrolho tinha dois ressaltos e a alavanca de manejo tinha uma inovação. Situada no lado esquerdo, ela tinha um ressalto para puxar o transportador do ferrolho e armar o fuzil. Após isso, o ressalto soltava o transportador do ferrolho, sendo que a cada disparo a alavanca de manejo permanecia imóvel.

AP-46.

O uso de metal estampado fez com que essa arma fosse mais simples de desmontar, seguindo o modelo adotado pelo PPS-43. Desta forma, o fuzil era dividido em duas partes. A parte de cima da caixa da culatra e a parte de baixo que incluía a empunhadura. Cabe ressaltar que este modelo tinha uma empunhadura dianteira, algo muito em voga nos dias atuais, mas que já era idealizado em 1946. O fuzil foi oferecido com coronha fixa de madeira e outra de metal dobrável. Cale mencionar que o termo AP não usa a letra R porque no alfabeto cirílico o R é representado por um P.

AP-46

Calibre: 7,62 x 41 mm
Comprimento total: 950 mm
Comprimento total com coronha rebatida: 730 mm
Peso: 4,1 Kg
Carregador: 30 cartuchos

 

Dementiev AD-46

Esta arma também tinha seus diferenciais. Também era um fuzil com êmbolo e pistão acima do cano. O transportador do ferrolho fazia parte do pistão também. A alavanca de manejo também fazia parte do pistão. Já a mola recuperadora não era fixada na base da caixa da culatra e sim na base da coronha. Na desmontagem isso permitia um acesso mais simples e fácil ao grupo do ferrolho e ao grupo do gatilho. Além disso, assim como os alemães no StG44, o cano era forjado a frio. Este processo de forja dava maior resistência ao cano, maior durabilidade e precisão. Porém fazia o seu tempo de produção aumentar e o preço subir.

AD-46.

O transportador do ferrolho se movimentava para trás por meio de dois chanfros na caixa da culatra. A mola recuperadora estava na parte de cima da culatra em volta da haste guia, que impulsionava depois o transportador do ferrolho para frente, onde travava na base do cano, colocado ao mesmo tempo um cartucho na câmara do cano.           

AD-46. Note que o pistão faz parte do transportador do ferrolho. A alavanca de manejo (a peça ao lado) é inserido no transportador, sendo solidária ao mesmo.

AD-46 1º modelo

Calibre: 7,62 x 41 mm
Comprimento total: 1.000 mm
Peso: 4,1 Kg
Carregador: 30 cartuchos

AD-46 2º modelo

Calibre: 7,62 x 41 mm
Comprimento total: 895 mm
Comprimento total com a coronha rebatida: 690 mm
Peso: 3,8 kg
Carregador: 30 cartuchos

 

Kalashnikov AK-46

Aqui surge a primeira versão da lenda. O trabalho árduo da equipe de Kalashnikov rendeu em novembro de 1946 dois modelos de fuzis, um com a caixa da culatra forjada e o outro modelo com a caixa da culatra estampada em metal, onde receberam a designação provisória de AK-1. Já em dezembro de 1946 ocorrem os primeiros testes de campo. A comissão avaliadora testa cinco projetos. Korobov, Bulkin, Kalashnikov, Demetyev e Rukavishnikov.

AK-46.

Após os primeiros testes, ficou claro que algumas coisas tinham de ser alteradas. A comissão avaliadora determina a retirada do bipode. Nada mais sensato, pois com a versatilidade e dinâmica do emprego do fuzil de assalto, o bipode raramente seria usado, sendo apenas mais uma peça para dar peso ao fuzil. O peso foi outro problema, já que os modelos tinham ficado pesados, agora se tem um limite de 4,4 Kg. Visando uma padronização da avaliação, assim como facilitar a produção e manutenção, o fuzil deveria ser operado a gás com um êmbolo acima do cano. Embora o uso do trancamento do ferrolho rotativo por ressaltos não fosse um requerimento, todas as equipes usaram isso, já que era uma forma simples e confiável de trancamento.

A pergunta que não quer calar. O ferrolho com dois ressaltos veio da ideia de Kalashnikov ou dos requisitos da comissão avaliadora? Isso é ainda um mistério porque não se sabe se era um requisito quando da aceitação dos primeiros esboços. Apenas sabemos que isso foi empregado por algumas equipes antes e depois. Lembremos que os requisitos novos vieram após os estudos dos projetos ofertados.

AK-46.

O fuzil tinha estampas em metal fixas pela lateral. Assim como os outros, tinha um pistão e êmbolo acima do cano. Porém, ao contrário dos demais, o pistão não era uma peça única com o ferrolho. Na verdade após o disparo os gases comprimiam o pistão que por sua vez praticamente batia no transportador do ferrolho, fazendo com que ele se movimentasse. A massa desse transportador do ferrolho era grande, de tal maneira que cobria quase 50% da caixa da culatra. Atrás tinha uma pequena tampa onde protegia a mola recuperadora.

A forma de como o carregador era fixado na caixa da culatra foi copiado do projeto Sudaev AS-44. Havia que primeiro acoplar a parte dianteira para depois acoplar a parte traseira. Entretanto, o retém do carregador foi considerado ruim já era muito pequeno e ficava logo atrás do carregador. O seletor de regime de disparo, ao contrário do que é hoje, ficava no lado esquerdo do fuzil acima da empunhadura. Importante dizer que o transportador do ferrolho se movia por trilhos alocados dentro da caixa da culatra e não pela lateral dela. A bem da verdade, havia seletores no lado esquerdo. Em um, o soldado selecionava semi ou automático. No outro seletor, selecionava fogo ou travado.

AK-46

Calibre: 7,62 x 41 mm
Comprimento total: 972 mm
Comprimento com a coronha rebatida: 743 mm
Peso: 4,1 Kg
Carregador: 30 cartuchos

 

Decisão

A comissão fez toda uma criteriosa avaliação dos modelos em testes de campo e resistência. Esses testes foram feitos em várias cidades diferentes por soldados diferentes. As equipes de Korobov e Rukavishnikov foram eliminadas, mantendo então as equipes de Kalashnikov, Dementyev e Bulkin.

O modelo de Rukavishnikov apresentava muitos erros de projeto. A adoção do êmbolo embaixo do cano fazia com que a o transportador do ferrolho e sua corrediça fossem peças que sofriam muito desgastes pelas pressões exercidas. A arma simplesmente quebrava de tal maneira que seria impossível arrumar no campo de batalha.

AP-46. Foi feito um modelo com coronha dobrável.

O modelo de Korobov tinha um problema de durabilidade. A mola recuperadora ficava em volta de uma haste embaixo do cano. Isso era um problema porque com o aquecimento do cano essa mola também esquentava e tendia a entortar, provocando falhas constantes na alimentação. E por ser um dos primeiros fuzis bullpups (ingleses já pesquisam isso na época) se depararam com um dos primeiros problemas, a ejeção da cápsula. Era do lado direito, de tal maneira que se o atirador fosse canhoto, poderia ter problemas caso usasse a arma.

Além disso, o TKB-408 teve mais problemas. A precisão era ruim dessa arma. Foram registrados problemas no regime automático, onde ocorriam várias falhas de alimentação. A forte vibração e impacto dos disparos mostraram que a armação em estampa era frágil e a arma tendia a quebrar. Não teve como prosseguir na concorrência.

TKB-408. Na desmontagem de campo da arma pode se ver que em cima havia o êmbolo e embaixo uma grande mola recuperadora.

O grande problema resulta que nenhuma das equipes conseguiu satisfazer os requisitos de precisão e resistência. Das três equipes, Kalashnikov era a que tinha mais problemas e críticas. Desta forma, às equipes de Bulkin, Kalashnikov e Dementyev foi oferecida a chance de refazer seus desenhos e projetos para que essas defeitos fossem sanados.

A comissão avaliadora notou que, a distâncias de até 250 metros, no regime semiautomático, as três equipes foram bem. Porém, a distâncias maiores, elas foram reprovadas. No regime automático as coisas não eram muito melhores na precisão. A comissão notou que algumas partes internas, nos disparos contínuos ou automáticos faziam com que a arma vibrasse, alterando a estabilidade dos projéteis disparados, diminuindo a precisão. Também, pelo desenho das armas, a mão esquerda tendia a ficar mais distante da caixa da culatra, o que alterava o centro de gravidade do fuzil, alterando também a precisão e controle. Curiosamente, nenhuma das equipes conseguiu superar esses requisitos, que tinham sido superados pelo modelo Sudaev AS-44.