AK-47 – Origens III

Segunda Parte

Maio de 1947. De volta às pranchetas. Kalashnikov tinha um problema. Seu modelo não era maduro ainda. As alterações necessárias deveriam fazer com que o AK-46 ficasse mais leve. Por sua vez, isso poderia alterar a resistência do fuzil que influenciaria na confiabilidade da arma. As mudanças deveriam ser maiores e mais profundas caso quisesse continuar na concorrência.

AK-46 2º modelo. Note a janela de ejeção de menor dimensão.

O modelo de Dementyev estava mais desenvolvido e completo. Para as próximas avaliações ele tinha que fazer pequenas alterações no seu projeto. Alteraram o arranjo interno da alavanca de manejo e também o quebrachamas, aumentando sua capacidade como compensador de recuo, o que tornava a arma mais controlável, aumentando assim a precisão. E o grupo do gatilho agora passa a ser uma parte única e destacável, o que facilitava muito a manutenção e economizava na sua produção.

AD-46 2º modelo. Note a ausência de um guardamão.

Já Bulkin opta por alterações mais profundas. Pelos mesmos motivos de Dementyev, eles alteraram o quebrachamas. Também se usou uma estamparia de metal mais reforçada,  e também pelas mesmas razões acima, fizeram o grupo do gatilho em uma peça única e destacável. A parte externa mais chamativa é a tampa da caixa da culatra que passa a ser destacável.

AB-46 2º modelo.

Já a equipe de Kalashnikov teria de fazer alterações mais profundas e sérias. Embora Kalashnikov tenha copiado soluções de outras armas e de seus concorrentes, ele foi inteligente em como misturou isso tudo numa arma que desse certo. Dentre as alterações, estava a tampa da caixa da culatra que era forjada. Agora passa a ser em material estampado, dando mais leveza ao fuzil a um custo menot. Um receptáculo foi colocado na parte de baixo da caixa da culatra onde se coloca o carregador. Isso dava mais firmeza para o carregador.

O pistão ainda não era ligado ao transportador do ferrolho, mas por um sistema de barra de gancho. A alavanca de manejo ficava imóvel a cada disparo, algo que não acontecia antes, já que a cada disparo a alavanca de manejo se movimentava. O ferrolho agora percorre um trilho feito na caixa da culatra. O AK tinha dois lados estampados presos por rebites. Antes, o ferrolho percorria um trilho situado na parte de cima da caixa da culatra. Agora ele fica dentro da armação da caixa da culatra. O cano foi diminuído em 50 mm e manteve o seletor de disparo no lado esquerdo do fuzil acima da empunhadura.

AK-46 2º modelo.

Desta forma, Kalashnikov apresentou, como exigia os requisitos da concorrência, duas versões do AK. AK-46 nº 1, com coronha fixa de madeira, e o AK-46 nº 2, com coronha rebatível de metal. Curiosamente, a coronha era praticamente igual ao modelo adotado no MP-40 alemão. Nestes modelos Kalashnikov não colocou quebrachamas no cano. Na 1º versão do seu AK-46, p quebrachamas era integrado ao cano com em forma de orifícios antes da massa de mira. Porém, nos outros AKs ele não tinha mais. Isso se dava porque muitos quebrachamas estavam apresentando problemas por sujeira ou incapacidade de suprir as chamas. A sua retirada mostrava mais acertada para evitar maiores problemas durante as avaliações.

AK-46 2º modelo Note a coronha dobrável.

AK-46 2º Modelo

Calibre: 7,62 x 41 mm
Comprimento total: 900mm
Comprimento total com a coronha rebatida: 660 mm
Peso: 4,1 Kg
Carregador: 30 cartuchos

 

Agosto de 1946. Recomeçam as avaliações e os testes de campo. E desta vez a equipe de Kalashnikov fica em… Último lugar. Bulkin ficou em primeiro lugar. Embora tivesse boa avaliação de tiro e tido notas melhores, a forma de como era construído o AK era ainda ruim. Dementyev e Bulkin usavam o pistão integrado ao transportador do ferrolho. Isso dava mais resistência durante os disparos, embora gerasse mais energia de recuo também já que toda a massa do grupo do ferrolho se locomovia com força.

Kalashnikov usava o transportador do ferrolho independente porque gerava menos stress na arma e gerava um recuo menor. Entretanto, falhava algumas vezes em condições árduas de uso, como neve, calor, umidade, etc. O resultado veio logo em seguida. Nenhuma das armas tinha completado todos os requisitos da concorrência. E as equipes Bulkin, Kalashnikov e Dementyev deveriam aperfeiçoar novamente os seus projetos. A meta principal era aumentar a resistência, confiabilidade e precisão. A única forma de Kalashnikov ganhar essa concorrência seria por fazer uma revisão completa de seu fuzil. O nome muda agora para AK-47.

AK-47.

A mudança é radical. A principal mudança é a adoção do sistema inventado por Bulkin. A junção do transportador do ferrolho com o pistão em uma única peça. No AK o transportador do ferrolho foi completamente redesenhado. Surge assim o transportador do ferrolho integrado ao pistão e à alavanca de manejo. Isso torna o fuzil mais resistente, torna mais simples de operar e torna a produção mais rápida e barata.

Ao lado esquerdo o transportador e ferrolho desenvolvido por Bulkin e ao lado direito o transportador e ferrolho copiado por Kalashnikov.

A alavanca de manejo muda do lado esquerdo para o direito. Isso se deu porque nos testes em campos, os soldados diziam que às vezes a alavanca prendia no uniforme ou algum acessório que estava na barriga do soldado. Outras vezes, ao rastejarem pelo chão, a alavanca de manejo era presa ou acionava o ferrolho sem querer. Desta forma ela passa para o lado direito para ficar livre e desimpedida.

O seletor de disparo também é reformulado, passa a ser uma peça grande ao invés de pequena. Mais uma vez, por observações feitas por soldados que achavam o seletor esquerdo muito pequeno. Se aumentassem a tecla, o seletor teria o mesmo problema que a alavanca de manejo, então ela foi posicionada no lado direto. Em cima travado, no meio é automático e embaixo semiautomático. Também aumentaram o tamanho da tecla do retém do carregador, pois soldados com luvas grossas não conseguiam acioná-los. A bem da verdade o seletor tinha grandes proporções para ser o mais fácil de usar.

A caixa da culatra também recebeu tratamento especial. Não são mais duas laterais unidas. Antes, eram duas laterais rebitadas e a junção delas ficava em cima. Com o uso dela, era comum aparecer pequenas fissuram entre as junções. Isso fazia com que poeira e sujeira entrassem por elas e acumulassem dentro da arma. Este problema havia sido visto por soldados que testaram os modelos anteriores do AK em campos de testes. Desta forma, Kalashnikov separou a caixa da culatra na parte de baixo, onde fica o grupo do gatilho, carregador e ferrolho. E a parte de cima, onde fica a haste guia e a mola recuperadora. Essa parte de cima era feita numa única peça estampada. Isso dava uma maior proteção contra sujeira. Sem falar que ficou mais fácil de desmontar o fuzil e realizar sua limpeza e manutenção.

AK-47.

Mas neste modelo não havia janelas de ventilação para o cano no guardamão. Isso acabava gerando uma temperatura maior dentro da arma. E outro ponto negativo foi o quebrachamas.

O quebrachamas tem duas finalidades. Como diz o próprio nome, eliminar ao máximo as chamas geradas pela combustão do propelente. Uma chama de uma arma pode ser vista de longe revelando a posição do atirador. Quanto menor a chama, mais discreto estará o atirador. E, além disso, o quebrachamas tem uma função secundária de compensador. Ela compensa o recuo, parte dos gases é conduzida a direções contrárias à direção do projétil. Isso faz com que haja um leve amortecimento do recuo. Com menor recuo, mais controlável é a arma e, por sua vez, maior é a precisão. O problema é que no AK-47 nº 1 o quebrachamas não eliminava as chamas. Além disso, a arma perdia a estabilidade no tiro porque o quebrachamas estava no cano e não na ponta dele. Estando nas laterais, o fuzil tendia mexer para um dos lados, tirando os projéteis da linha mirada. Esse problema tinha de ser solucionado. Para tanto, no 2º modelo do AK-47 foi incorporado um quebrachamas de grandes proporções.

Em 1947, os soviéticos alteram outro fator importante. O calibre. Nesse ínterim de pesquisas, desenvolvimento e testes, os soviéticos ainda pesquisam e viam uma forma de melhorar a balística do 7,62 x 41 mm. Após muitas pesquisas e testes, alteraram o calibre para 7,62 x 39 mm. Este sim o calibre usado até hoje. Embora tenham trocado o calibre, Kalashnikov, Demetyev e Bulkin continuaram os testes com o 7,62 x 41 mm. O calibre oficial só seria adotado após a escolha oficial do fuzil de assalto.

Melhorando isso e outros problemas, Kalashnikov e sua equipe lançam a 2º versão do seu AK-47.

AK-47 2º modelo.

A primeira alteração foi o grupo do gatilho. Ele era considerado problemático e complexo, eles resolveram adotar mais uma vez um modelo pronto como base. Assim usaram o desenho técnico do grupo do gatilho do fuzil semiautomático tchecoslovaco ZH-29. Isso solucionava o problema do movimento do mecanismo de cão interno que vibrava durante do disparo, isso no final interferia na precisão pelo balanceamento do fuzil. Além disso, aumentou-se a segurança no mesmo mecanismo. Isso evitava disparos acidentais em caso de queda e, em virtude do grande aquecimento do cano (pela falta de ventilação), voltaram as janelas de ventilação. Para melhorar ainda, Kalashnikov diminuiu o comprimento do guardamão, expondo mais o cano ao meio exterior. Isso faz com que o cano seja esfriado naturalmente. 

E falando em cano, para melhorar o controle da arma e aumentar a precisão, é adotado um quebrachamas na boca do cano de grandes proporções, com duas grandes câmaras. Era uma tentativa de não só diminuir as chamas dos disparos como também de diminuir o grande recuo que o fuzil gerava. Depois foi verificado outro problema. O problema do AK-47 era que o movimento do pistão que movia o transportador do ferrolho retrocedia com uma grande energia, com um movimento muito forte que fazia o transportador do ferrolho retroceder com muita violência contra a mola recuperadora. Uma forma de contornar isso era o quebrachamas, mas não tinha como controlar a quantidade interna de gases, praticamente insuficiente.

AK-47 2º modelo.

Terminadas os últimos reparos e adaptações, os novos fuzis fora novamente colocados testes que ocorrem entre 16 de dezembro de 1947 e 11 de janeiro de 1948. Os resultados nos campos de tiro foram interessantes. O AK-47 saiu vencedor no regime semiautomático. O fuzil tinha boa precisão e ganhou dos outros duas concorrentes. Porém, em regime automático em rajadas curtas, o AK-47 ainda perdia para Bulkin, que tinha mais controle e precisão em rajadas curtas. As posições aqui usadas eram as ideais, ou com a arma apoiada ou com o soldado apoiando devidamente o fuzil. Em situações adversas, as três armas foram reprovadas. Em campo, a simplicidade do AK-47 e do fuzil de Bulkin eram mais simples, de tal ordem que o fuzil de Dementyev era bem mais complicado.

Um nova bateria de testes começa em 27 de dezembro. A meta era avaliar a precisão e resistência com disparos nos mais diferentes situações com umidade, frio, calor, neve, areia e água. O inesperado aconteceu. O AK-47 saiu vencedor em todas as condições, mas com ressalvas. O fuzil de Dementiev falhava e quebrava com mais facilidade. E o fuzil de Bulkin se mostrou frágil com areia e terra. O NIPSMVO faz o anúncio final em 10 de janeiro de 1948. Basicamente dizia três coisas. O fuzil Kalashnikov alcançava todos os requisitos emitidos, sendo recomendado para produção em série. Embora isso, a precisão do AK ainda era deficiente em rajadas, de tal ordem que deveria ser trabalhado para que superasse isso. E por fim, os fuzis apresentados por Bulkin e Dementyev não haviam alcançado os requisitos.

AK-47 nº1.

O AK-47 finalmente conseguia a vitória.

 

Uma vitória tipicamente comunista

Caro Leitor, não percebeu nada de estranho? O fuzil da equipe de Kalashnikov só tinha reveses e problemas e de repente, do nada, como que por encanto, atende todos os requisitos em curto espaço de tempo e logra vitória? Temos que voltar um pouco no tempo.

O NIPSMVO era um campo de pesquisas e teste de novas armas. Quando foi ferido em combate, Kalashnikov usou o tempo de sua recuperação justamente nesse lugar a partir de 1942. Lá ele não só estudou como tentou desenvolver duas fracassadas armas, uma submetralhadora e uma carabina semiautomática. Após breve avaliação, foram consideram complexas e ruins.

Kalashnikov em foto de propaganda no início do programa de escolha do fuzil de assalto soviético.

Nesse tempo até 1946, ele teve tempo de sobra para estudar os modelos de armas do mundo inteiro que o NIPSMVO tinha em suas dependências. Ao entrar em contato com várias armas, ele copiou e se embasou em ideias e desenhos já existentes, o que lhe deu vantagem quando ele não tinha nenhum conhecimento sobre armas automáticas. Mas não só isso o ajudou em sua saga. Nesses anos no NIPSMVO, Kalashnikov conheceu muita gente e se tornou destaque, conseguindo notória influência. Em um dado momento da escolha do fuzil, Kalashnikov tinha contato com os membros julgadores da avaliação. A tal ponto que um membro deles, Aleksander Malimon, disse que o fuzil deveria se reformulado quase que por completo. Era ajuda que as outras equipes não tinham.

Ele formou uma equipe de pessoas gabaritadas e com alto conhecimento, pessoas estas já destacadas antes de tudo começar. Um membro de sua equipe, Sasha Zaitsev, era famoso pelo seu conhecimento técnico. Quando o NIPSMVO confidenciou que o fuzil tinha que ser reformulado, Kalashnikov não aceitou, dizendo que não haveria tempo. Aí é que entra Zaitsev, pois ele convence não Kalashnikov, mas sim toda a equipe de que a única forma era reformular o fuzil. Foi somente assim que a arma passou por toda reformulação que levou a vitória, caso contrário, Kalashnikov teria mantido o antigo projeto fadado ao fracasso.

AK-47 e AB-46. O modelo de Bulkin fora considerado superior em muitos requisitos, sendo que a equipe de Kalashnikov copiou partes importantes do AB-46. O AB-46 foi um sério e forte concorrente.

Quando Kalashnikov apresentou seu modelo AK-46, o fuzil quase foi eliminado da concorrência.  Um oficial que fazia parte da comissão avaliadora era o Major Vassily Fyodorovich Lyuty. Ele passou a Kalashnikov um total de 18 alterações do projeto para que ele fosse no mínimo viável. A este ponto o fuzil já estava eliminado da concorrência. Graças ao Major Lyuty o NIPSMVO concordou em manter Kalashnikov a continuar no programa. A vantagem de Kalashnikov era tamanha que o Major Lyuty chamou um Coronel, Vladmir Deikin, e ajudou Kalashnikov a aperfeiçoar o seu fuzil. O método soviético era diferente porque as outras equipes não tinham o mesmo tipo de ajuda. Isso criava até atrito entre elas. Por exemplo, Bulkin vivia discutindo com os membros do NIPSMVO quando a sua arma se saía melhor e era posta de lado.

Kalashnikov no fim teve todo um leque de ajuda que as outras equipes não tinham. Além disso, copiou ideias e desenhos de seus concorrentes na sua arma e resultou no AK-47. Como se o AK-47 estivesse selecionado desde o 1º dia da concorrência mesmo tendo uma miríade de problemas. Temos que levar em conta que naquela época não existia a propriedade industrial e autoral sobre os desenhos na URSS. Praticamente tudo era de todos, mas só uns podiam usufruir. Bem típico da filosofia comunista.

 

Curiosidades

Quando Kalashnikov terminou a sua submetralhadora em 1942, ele foi incumbido de levar o protótipo pessoalmente ao centro de registro do exército que ficava no Cazaquistão. Então ele viajou de trem nessa empreitada. Chegando lá, ele se apresentou e mostrou o que levava, com a função de expor aos comissários o seu novo projeto. Ele foi preso por quatro dias! Em plena guerra, como um soldado poderia desenvolver uma submetralhadora fora dos planos militares? Suspeitaram que ele fosse espião ou um sabotador, só alguns dias depois é que confirmaram a missão dele e ele foi posto em liberdade.

Submetralhadora desenvolvida por Kalashnikov. Projeto reprovado.

O seletor de disparo do AK-47 é uma peça que sempre chamou a atenção por ser grande e funcional. Mas de onde veio essa ideia? Em 1906 a Remington lança uma carabina semiautomática, o Remington Auto-loading Repeating Rifle, onde mais tarde, em 1911, seria redenominado Remington Model 8. A ideia do seletor do AK-47 veio dessa arma.

Note o seletor do Remington Model 8.

 

Agradecimentos

Esta parte introdutória de 3 capítulos não poderia ter sido feita sem a imprescindível ajuda dos amigos russos Iuri Volkov, ex-militar e hoje empresário. Serguei Grinin, ex-militar e hoje funcionário público e Matvei Ryabkov, engenheiro elétrico. Большое спасибо, друзья!