AK-47

Selecionado como fuzil vencedor da concorrência, o AK-47 ainda não é o AK-47 como conhecemos hoje. Este artigo irá abordar o AK-47. O fuzil que vemos construído aos milhões usados pelo mundo inteiro e construído por vários países é o AKM-47, que será objeto de outro artigo. O AK-47 foi o modelo inicial de produção que colocou a URSS como a primeira nação a adotar um fuzil de assalto em massa após a guerra.

 

As últimas alterações

O AK-47 ainda não estava finalizado quando foi selecionado como o fuzil de assalto da URSS. Ele havia sido selecionado e agora é que seriam estabelecidos os requerimentos de produção. Em 21 de janeiro de 1948 se decide que haveria a produção de um lote inicial para testes e depois a produção seriada do AK-47 (coronha fixa de madeira) e do AKS-47 (coronha metálica dobrável). AK de Avtomat Kalashnikova e AKS de Avtomat Kalashnikova Skladnoy.

Esses testes mostraram pontos que deveriam ser melhorados. O quebrachamas usado tinha um problema maior, ele fazia um estampido muito alto. Alto a ponto de atrapalhar os soldados, e aqui falamos aqui de um barulho alto, mas muito alto. O outro problema disso era que o som muito alto poderia denunciar a posição do soldado, onde o inimigo poderia ver a origem dos disparos e assim revidar fogo. A solução para isso foi o mais simples possível. Simplesmente se tirou o quebrachamas, fazendo com o que o barulho do estampido diminuísse.

AK-47 em sua 1ª versão em metal estampado. Note os orifícios do quebrachamas.

Ao contrário do que se pensa, o AK-47 não tinha de série um quebrachamas, somente nos modelos experimentais pré-produção em massa. A ausência de um quebrachamas era uma grande desvantagem. A deflagração do cartucho gera chamas que em condições de baixa luminosidade acaba por gerando um efeito de flash a longas distâncias. Para o inimigo é uma vantagem, pois ele pode ver de onde vêm os tiros. O quebrachamas também servia para controlar o recuo quando tinha a capacidade de compensador, quando se dirige os gases em direções contrárias ao recuo, fazendo o cano da arma subir menos. Entretanto, os engenheiros queriam retirar essa peça.

Visando melhorar isso foram colocados orifícios no começo do êmbolo de gases, dispersando parte dos gases, movendo-os para fora e fazendo com que o pistão movesse com menos energia. Isso além de diminuir o recuo tornava a arma mais precisa. Com o problema da grande energia repassada ao transportador do ferrolho estava resolvido, não havia mais a necessidade daquele grande quebrachamas. Agora é feito um pequeno quebrachamas, de pequenas proporções integrado diretamente na ponta do cano.

Tudo pronto com a arma, mas agora aparece outro problema. Havia prazos curtos e metas grandes para um orçamento mínimo. Até 1955, esperava-se a produção inicial de 2,4 milhões de AK-47. O problema é que o parque industrial para isso era atrasado. Os soviéticos haviam investido pesado na pesquisa e desenvolvimento das armas mas não nos métodos de produção. Com as primeiras armas produzidas, notaram que ela levava muito tempo para ser montada, e, além disso, os métodos de produção limitavam a quantidade de peças produzidas. Uma forma de fazer frente a isso seria investimentos em tecnologias de produção, o que ajudou, mas não solucionou o problema.

AK-47 em sua 1ª versão em metal estampado.

As armas demoravam em serem montadas. As peças demoravam em serem produzidas e o custo disso tudo era alto. Para piorar, os primeiros AK-47 em metal estampado apresentavam problemas de qualidade. Muitas caixas da culatra simplesmente quebravam ou se soltavam. A URSS ainda não tinha tecnologia de fabricação eficaz com metal estampado. Quando faziam a arma ela funcionava perfeitamente. Entretanto, quando postas em testes de campo onde a arma é usada a além dos limites, a estamparia se mostrava frágil. Uma solução às pressas deveria ser tomada, afinal, Stálin ainda estava vivo e ninguém queria se mudar para a Sibéria.

Em 1951 decidiu-se fazer a caixa da culatra em uma única peça usinada, sendo que a tampa seria em material estampado. O fuzil ganha peso com isso, passa a ter 4,3 Kg descarregado e 4,8 kg carregado. Por outro lado, a fabricação ficou mais fácil. Não havia a necessidade de maiores procedimentos de fabricação e havia também menos peças na arma. Cabe ressaltar o seguinte. Em um parque industrial moderno, a fabricação em metal estampado é mais rápida e mais barata do que uma peça forjada. Ocorre que a situação da URSS era diferente. Seu parque industrial, mesmo no começo dos anos 50, era atrasado. Fazer um fuzil em metal estampado levaria mais tempo e sairia mais caro ao invés do bloco usinado que, para eles, seria mais barato e eficaz.

O próprio peso a mais do fuzil acaba por absorver parte do recuo, onde no final aumentava um pouco a precisão, algo muito ainda criticado no AK-47. E no final, o preço de produção caiu quase que pela metade. Isso é interessante porque muito se diz que foi o contrário. A URSS dominava o procedimento de forja e para eles, naquele momento, sairia mais fácil e barato do que estampar o metal.

AK-47 com chassi usinado. Note a alavanca de manejo no formato achatada ao invés de ser cilíndrica. Era mais fácil assim de operar a arma.

Um ponto importante que precisa ser dito. Até aqui, todas as armas e protótipos usavam o calibre 7,62 x 41 mm. Era o calibre desenvolvido em 1944.  Entre 1947 e 1948, o calibre passa por uma leve reformulação e passa a ser 7,62 x 39 mm. Este calibre novo só passou a ser usado com a produção em massa do AK-47 a partir de 1948. É comum encontrar menções errôneas de que se usava o 7,62 x 39 mm até então.

É necessário aqui citar ponto importante. A finalização e a produção em massa do AK-47 ocorreu em Izhevsk, uma cidade onde estava a nova grande fábrica. Terminada a guerra, vários gênios alemães foram literalmente cassados, no caso do oeste foram levados em troca de gordos salários com muitos crimes e responsabilidades de guerra perdoados. Já para o Leste foram “convidados” a ir para a URSS, sob ameaça de processos ou prisões. Dentre eles, estava Hugo Schmeisser, que fora preso e levado para a Rússia em 1946. Mas quem era esse homem? Um renomado engenheiro projetista de armas e foi quem criou o StG44. E para onde foi enviado Schmeisser? Exatamente para Izhevsk. O mais curioso é que ele trabalhou lá até 1952, logo após a produção em massa do AK-47. Muita coincidência, não?

 

Habemus AK-47!

Finalmente a URSS tem o seu fuzil de assalto. O AK-47 em calibre 7,62 x 39 mm passa ser produzido em massa a partir de 1951 com bloco da caixa da culatra usinado ao invés de estampado. Os primeiros lotes passam a ser mandados para todo o território soviético onde as tropas passam a usá-lo em peso. O propósito foi alcançado. Uma arma simples de operar, simples de manter, simples de limpar e simples de instruir. A URSS tinha literalmente uma horda de soldados. Esses soldados eram em sua vasta maioria pessoas sem estudos, sem educação, pessoas do campo da era feudal.

AK-47.

Treinar todo esse povo necessitaria ter uma arma que fosse simples e fácil de entender. Entretanto, o ponto principal do AK-47 foi a sua produção. O AK-47 nunca foi projetado para ser um fuzil preciso, um fuzil com ótimo acabamento ou um fuzil com grande alcance. O AK-47 foi idealizado para ser feito em massa, em grandes quantidades, de forma simples, rápida e barata. Essa era a doutrina da URSS naquele tempo, criar um vasto exército, junto com os países satélites, em um curto período de tempo. Para isso, o fuzil de assalto deveria ser simples para poder ser fabricado e massa e em grandes quantidades para armar todos esses exércitos.

AK-47.

Isso foi seguido por uma segunda revolução na URSS porque a operação, montagem e desmontagem eram simples demais. Sem a necessidade de ferramentas, se desmontava e montava a arma. O AK-47 tinha poucas peças internas e assim era fácil de limpar tudo. Colocava-se o carregador, puxava a longa alavanca de manejo e era só mirar. Pode não parecer, mas milhões de soldados foram treinados em pouco tempo com esse fuzil. Quanto menor o tempo de treino, maior é o exército. E assim, menor o tempo para a formação da reserva. Isso seria impensável com fuzil da época, como o M14, FAL, G3, CETME StG57, entre outros. Uma das maiores vantagens do AK-47 era a sua simplicidade que, por sua vez, influenciava no treinamento do soldado. Como era uma arma simples era fácil de instruir e aprender com ele. Isso economizava tempo no treinamento.

AK-47.

É por essa visão de simplicidade que temos o seletor do AK-47 daquela maneira. Ele é grande para o soldado soviético não errar. Por mais que um idiota tente errar, ele não vai conseguir. Em cima, travado. No meio, semiautomático. Embaixo, automático. E é do lado direto para o soldado que tiver que rastejar não correr o risco de acionar a alavanca de manejo sem querer. Da mesma forma é a o retém do carregador. Uma peça ambidestra simples e de fácil acesso bem atrás do carregador.

Com o uso do bloco usinado, o AK-47 ficou mais pesado. O fuzil em si não seria problema. Mas temos que levar em conta todo o material que o soldado levava. Pela doutrina soviética, além do material básico, o soldado ainda levava 180 cartuchos de 7,62 x 39 mm, o que gerava um peso de quase 9 kg ao soldado. Uma forma de contornar o peso do fuzil foi usar um tipo de metal mais leve e mais resistente. Isso fez com que as versões finais do AK-47 pesassem descarregado 3,8 kg. Pelo tempo de pesquisa, essa versão mais leve teve pouco tempo de produção já que demorou para ser pesquisada e usada na linha de produção.

O outro problema é o recuo e a precisão. O calibre 7,62 x 39 mm gera um recuo maior em uma arma com cano de 415 mm de comprimento. O recuo é mais acentuado nesses comprimentos de canos em virtude da alta potência e pelo pouco comprimento para o aproveitamento dos gases. Isso é um problema em rajadas curtas. Mesmo em rajadas de 3 a 5 disparos, a arma não é controlável para uma precisão satisfatória a 100 metros, muito menos os 300 metros exigidos. Disparar com o AK-47, mesmo em semi, é mais fácil, mas a precisão ainda é deficiente. É quase impossível acertar um alvo a 300 metros. O problema reside no comprimento do cano que é curto para a balística que o calibre fornece. Para piorar um pouco, os soviéticos retiram os orifícios do quebrachamas. No AK-47 não existe um quebrachamas ou compensador, o que faz aumentar o recuo e diminuindo, assim, a precisão.

AKS-47.

A versão AKS-47 era compacta com a coronha rebatível. Isso foi muito útil para paraquedistas, tropas especiais, oficiais e tripulação. Mas atirar com ela não era nada fácil. O ângulo da coronha faz com que o soldado tenha que forçar o pescoço e a cabeça de lado para usar a mira já que não poderia apoiar na coronha. Isso incomoda porque o soldado passa a ter dor no pescoço se ficar fazendo muito tempo a mira. E na hora do disparo, a coisa é pior porque é mais difícil manter a visada do alvo. A coronha rebatível não tinha apoio para a lateral do rosto, isso fazia com que o soldado usasse o músculo do pescoço para manter a inclinação da cabeça para a mira. Isso fazia com que a precisão caísse. E esta não era a única desvantagem do AKS-47.

AKS-47.

O AK-47, como todo fuzil, dispunha de uma baioneta. A arma era muito resistente, os soldados gostavam do fuzil porque com a baioneta se tornava numa ótima arma para luta corporal. Com uma mão na coronha e a outra no guardamão, a arma era leve e fácil de usar com a baioneta. Mas isto já não acontecia com AKS-47. A coronha rebatível tinha duas hastes que era praticamente impossível de segurar com firmeza para uma luta corporal. Se o soldado rebatesse a coronha, era pior ainda. Hoje a baioneta tem um papel relegado, mas naquela época era um item de vital importância para a doutrina soviética.

AK-47 parcialmente desmontado. Note o transportador do ferrolho ligado diretamente ao pistão.

E o uso pelas tropas descobriu algo mais interessante ainda. O transportador do ferrolho e pistão, uma única peça, recuava com muita força a cada disparo. Isso é um dos motivos que leva ao aumento do recuo e perda da precisão já que toda essa massa é projetada de uma única vez. Mas não é esse o ponto. Se notarem, verão que o AK-47 tem uma grande janela de ejeção. Isso permite a entrada de sujeira na parte dos trilhos do transportador do ferrolho. Porém, em virtude dessa grande pressão, o recuo do transportador do ferrolho com mais violência acaba por expelindo uma sujeira ou outra que fique no caminho do transportador do ferrolho. Essa energia a mais no transportador do ferrolho funcionava como um aumento de força na operação do fuzil, e isso torna o fuzil menos sujeito a panes por sujeiras. É por isso que o AK-47 tem a fama de ser resistente. Não pela qualidade do material ou método de fabricação, mas porque a energia dos gases era mais aproveitada. Por outro lado, isso diminuía a vida útil do fuzil.

Se por um lado a alavanca seletora tinha agradado pelo seu tamanho, desagradava pelo barulho. O desenho técnico fazia com que a trava batia com força em uma chapa interna. Isso significava que toda vez que o seletor era acionado, assim como a trava, emitia um som alto e forte. Da mesma forma que era duro esse seletor. Isso se mostrou um problema quando tropas especiais ou comandos faziam missões que exigiam mais discrição.

AK-47.

Outro problema que causava confusão era o ferrolho. Após o último disparo, o ferrolho ficava fechado. Isso causava confusão ao soldado porque no tiroteio ele não sabia se a munição tinha acabado ou se tinha alguma falha no cartucho, ou até mesmo alguma pane mecânica. Isso exigia que ele puxasse o ferrolho algumas vezes para ter certeza se era pane ou se era carregador vazio.

AK-47.

 

Os primeiros contatos com o Ocidente

A CIA não deixava passar nada sobre o que era feito em território soviético e com o AK-47 não foi diferente. Em meados de 1955, os americanos conseguiram uma cópia do manual do AK-47. Esse manual era de 1952 e após a tradução ao inglês, notaram que essa nova arma não tinha uma categoria específica. Primeiramente acharam que se tratava de uma metralhadora leve. Em 1956, após mais estudos e suposições, eles achavam que o AK-47 era uma submetralhadora. Em muitos momentos os americanos demonstravam desdém, onde chamava o AK-47 de metralhadora várias vezes, algo inepto para armar todos os soldados soviéticos.

Logo em 1956, a URSS invadiria a Hungria para esmagar uma revolta contra a ocupação soviética. Assim como na Alemanha em 1953, a URSS mandava tropas e tanques para sufocar qualquer tentativa de independência. No meio das batalhas e da bagunça, não tardou para que a resistência capturasse alguns AK-47. Eis que aparece um resistente chamado Jozsef Fejes segurando um AK-47. Essa foto correu por todos os órgãos de inteligência ocidentais, mostrando que um novo tipo de arma russa seria fabricada em massa. Curiosamente, essa mesma foto foi usada para a condenação de Fejes, enforcado pelos soviéticos em 1959 sob acusação de “sabotador subversivo”. Todo resistente merece um lugar no hall dos heróis.

Jozsef Fejes com um AK-47 capturado. Essa foi a primeira imagem pública que o ocidente teve do AK-47.

Voltando a 1956. Em novembro desse ano a CIA tinha recrutado um agente. Tratava-se de Ervim Rimots, um oficial do exército húngaro. A ele foi oferecido 10.000 dólares (hoje esse valor seria de 90.000 dólares) por um AK-47. Mas ele foi pego antes que pudesse entregar qualquer fuzil para a CIA. Os americanos não pararam e continuaram sua busca por um modelo até que conseguiram o fuzil em 1957.

Em 1961 a Indonésia comprou AK-47s para os paraquedistas do seu exército para serem empregados na então Nova Guiné Ocidental, na época ocupada pelos Holandeses. Em agosto de 1962, houve um combate na mata onde os holandeses conseguiram capturar vários AK-47s. E ficaram impressionados. A arma era simples, robusta e resistia ao calor, sujeira e umidade. Pela primeira vez soldados ocidentais tinham contato com o AK-47.

 

Entrada operacional

No começo AK-47 não era enviado para todo o soldado soviético porque ainda existiam discrepâncias na quantidade e proporção. Mas em um pelotão, por exemplo, tinha soldados com submetralhadoras PPS-43 ou PPSH-41, carabinas semiautomáticas SKS e um AK-47, geralmente para o líder. Só depois de muitos anos que o AK-47 substituiu as submetralhadoras e carabinas. Aos poucos começaram a notar que não havia sentido manter carabinas automáticas de mesmo calibre quando se tinha uma arma com maior poder de fogo. Aos poucos as carabinas foram perdendo importância e cedendo espaço para o AK-47. A mesma coisa ocorreu com as submetralhadoras. Tinha um alto poder de fogo, mas um calibre inferior ao fuzil de assalto. De nada adiantava manter essas armas quando o AK-47 fazia o mesmo papel, de forma melhor e mais versátil. Tirando as submetralhadoras, se melhorava a cadeia logística, pois era uma demanda a menos com uma munição diferente, peças para as submetralhadoras e treinamento.

AK-47.

As exportações seriam muito limitadas, mas algo de ótimo acontece em 1953. Morre Stálin, uma das figuras mais desgraçadas que o planeta já teve. Agora as coisas mudam um pouco. Com a nova política liderada por Kruschev, se decide permitir a instalação de fábricas em outros países satélites para a massificação da produção do fuzil. Não fazia sentido somente a Rússia manter a produção do AK-47 porque isso apenas atrasaria o suprimento de armas para os exércitos de outros países. E em caso de uma guerra nuclear, a esfera socialista perderia seu único fornecedor de armamento leve.

Ao contrário do que se pensa, não foi na Hungria que o AK-47 fez sua estreia. Foi na Alemanha Oriental. Em 1953 os alemães orientais começaram com um protesto por mais liberdade que logo se tornou em uma revolta de 50.000 pessoas contrárias ao domínio soviético. Para tanto foram enviada tropas e tanques soviéticos para esmagar a revolta. Embora em pequeno nº, foi a estreia do AK-47 que era distribuído pelos soviéticos em quantidades muito pequenas ainda, sempre destinada ao oficial do pelotão. Com o plano de massificação das armas sem mais um controle único, a URSS permitiu que países de sua esfera fabricassem o AK-47. A Polônia foi o primeiro país a fazer em 1956. Em três anos, também entrariam ao grupo a Alemanha Oriental, Hungria, Romênia e Bulgária.

Soldados alemães orientais com o AK-47.

A Alemanha Oriental foi um caso sui generis. Depois do fim da guerra, ela ficara limitada a construir armas. Como proceder? Expropriaram uma grande aérea agrícola e isolaram essa área com cercas, cães de guarda e cancelas. No meio construíram uma grande fábrica isolada da cidade, onde ligaram essa fábrica a uma linha de trem. Logo mais tarde torres de vigilância também surgiram. Os empregados eram selecionados de forma rigorosa, não podendo ter nenhum parente da Alemanha Ocidental e tinha que jurar a Stasi (a temível polícia secreta) que jamais diriam uma única palavra sobre o trabalho feito dentro dessa fábrica. E o que fazia essa fábrica? Eletrodomésticos e ferramentas em geral. Pois é, esta foi a forma de como a URSS passou para a Alemanha Oriental todo o maquinário necessário para a produção em massa do AK-47 para eles. Por muitos anos se pensou que a fábrica fazia eletrodomésticos quando na verdade se fazia fuzis de assalto. Dessa fábrica saiu AK-47s para Argélia, Iraque, Índia, Iêmen e Congo.

Todos os países do leste europeu acabaram de uma forma ou outra fazendo suas cópias dos AK-47. Com exceção da Albânia, que negociou diretamente com a China a licença de produção do AK-47 chinês, o Tipo 56.

O Tipo 56 é a cópia chinesa do AK-47. Note a baioneta virada para o guardamão.

O AK-47 havia despertado interesse. Dois países se interessaram pelo fuzil e eles tentaram obter ele de uma forma e conseguiram de outra forma. Em 1956 a Finlândia se interessou pelo calibre 7,62 x 39 mm e queria uma nova arma para ele. O AK-47 era próspero, mas era praticamente impossível comprá-lo diretamente da URSS. Em uma viagem a Moscou, uma comissão militar finlandesa teve contato com o AK-47 e viram que seria a arma ideal para produção local. Um agente finlandês viajou até a Polônia onde comprou um AK-47 em 1956. Desmontaram a arma e levaram para a Finlândia. Os finlandeses ficaram impressionados e queriam mais. Compraram mais 100 fuzis da Polônia para servir de base para uma produção em série. Diante disto, a URSS vendeu 20.000 fuzis de uma vez. A URSS viu isso não como um negócio ruim, pois acabara de aumentar a sua vantagem logística em caso de invasão. Assim surgia a linha Rk62.

Rk62.

A Iugoslávia tentou fazer o mesmo. Ela não estava na lista de prioridades da esfera soviética e Tito queria um fuzil de assalto para seu exército. A bem da verdade Stálin não via a Iugoslávia como um país importante, relegando uma importância secundária. Os iugoslavos tinham capacidade para produzir um fuzil em série porque já tinham conhecimento e gabarito com armas de fogo automáticas e maquinários necessários para isso. Eles conseguiram alguns AKs pela Albânia (o primeiro lote de fuzis vinha da URSS para a Albânia). O plano iugoslavo era produzir localmente o AK-47 sem autorização de Moscou. Diante desse quadro, de novo a URSS cedeu e permitiu a produção em série do AK-47 pela Zastava.

Soldados iugoslavos com o AK-47.

 

O AK-47 em uso

O uso do AK-47 é simples e fácil. Ele foi concebido para ser usado de forma fácil, com aprendizado em pouco espaço de tempo. O soldado médio soviético não era tão provido de conhecimentos sobre armas de fogo e como usá-las. A maioria do exército soviético era de pessoas que viviam em locais sem educação, centros de formação ou instrução. Eram pessoas muito simples que viviam do trabalho do campo em condições do século XIX. Para esse soldado a arma deveria ser o mais simples de usar e manter. Isso influencia, por exemplo, os comandos do fuzil, peças grandes como a alavanca de manejo e o retém do carregador.

Soldados soviéticos com o AK-47.

As peças vitais do fuzil também eram assim. Peças grandes, rígidas e fáceis de tirar e desmontar. A tampa da culatra era retirada por um botão em sua base. Ficava exposta a mola recuperadora. Retirada ela, se retirava o grupo do ferrolho que era ligada ao longo pistão, uma única peça. Isso facilitava a limpeza e a remontagem sem ferramenta nenhuma. Pode parecer banal, mas isso era muito elogiado porque era difícil perder essas peças. A limpeza era feita em qualquer lugar, em qualquer clima ou intempérie adversa. A limpeza do fuzil era muito fácil e simples.

Os soviéticos, no começo, usavam o AK-47 como arma de apoio, mas logo se tornou a arma principal, o que fez mudar a forma de como era usada pelo pelotão. A doutrina soviética da época previa um movimento grande de tropas em assalto rápido. Depois do assalto, se tomava as posições defensivas para então iniciar outro assalto. Durante o assalto, os soviéticos priorizavam o uso automático do fuzil, enquanto que nas posições defensivas se usava o semiautomático. Isso vinha desde o começo da 2ª G. M., quando as tropas soviéticas passaram a ser armadas mais com submetralhadoras do que fuzis. O uso de grande massa humana contra minorias mais protegidas fazia o efeito do desgaste pela quantidade de soldados que atacavam. A grande desvantagem era o alto índice de baixas que isso causava para o lado soviético. Após a guerra e com a introdução do AK-47, essa doutrina se manteve em partes.

A doutrina do emprego automático não se mostrou muito vantajosa na medida em que o AK-47 tinha uma grande dispersão a 100 metros, o que tornava inviável o emprego de rajadas curtas com alguma precisão satisfatória. Em regime semiautomático, o soldado mais bem treinado conseguia acertos até no máximo 300 metros, não mais do que isso. Isso se dava por dois fatores. O comprimento do cano de 415 mm se mostrava limitado para a balística do 7,62 x 39 mm, o projétil era considerado pesado para a velocidade que dispunha. O alcance eficaz do AK-47 era algo de até no máximo 200 metros onde o soldado tinha maiores chances de acerto com a derrubada do alvo. Outro ponto que influencia também a precisão é a mira.

Soldado búlgaro com o AK-47.

Ela tem um formato simples que permite um rápido enquadramento. Por ser mais aberta, fica mais fácil de ver o pino da massa de mira. Entretanto, as laterais são grandes e praticamente a mira cobre o alvo todo a distâncias de até 200 metros. Com muito treino, o soldado até poderia mirar com os dois olhos abertos, mas mesmo assim limitaria a distância eficaz da mira. A alça da mira tinha graduação de até 800 metros, o que era um completo absurdo, pois é praticamente acertar nada nessa distância e, mesmo acertando, o projétil não teria energia para derrubar o alvo na maioria das vezes.

Um problema que atrapalhou um pouco os soviéticos no começo foi o ferrolho que permanecia fechado após o último disparo. Não há um retém porque isso exigiria alteração no desenho técnico do grupo do ferrolho, o que encareceria o fuzil e tornaria a produção mais cara. Diante disso os soldados tinha certa confusão na operação da arma. Pelo treino, quando acabava a munição, deveria se puxar a alavanca de manejo uma vez para ter certeza que havia acabado a munição. Entretanto, muitas vezes os soldados achavam que tinha acabado, mas não tinha, ao puxar a alavanca, ejetava-se um cartucho novo. Outras vezes quando se tinha pane, o soldado recarregava a arma e acionava a alavanca de manejo, onde nada acontecia em virtude da pane. Então o soldado ora verificava o carregador, ora a arma. Isso no começo gerou certa confusão e só foi solucionado depois que a arma foi entregue em massa.

Soldado soviético com o AK-47. Note que o soldado ao fundo usa um SKS. No início de seu uso operacional o AK-47 não substituía todas as armas do pelotão.

Existe um mito sobre o AK-47, a sua enigmática resistência a sujeira. Embora em manuais e instrução seja dito que o fuzil, como qualquer fuzil, tem de ter cuidado com sujeira, existe ainda hoje um conceito errôneo de que a arma funciona sob quaisquer condições. Essa falsa ideia é reforçada em vídeos de internet em testes para lá de suspeitos. Em tais vídeos, a arma é jogada na lama, se joga pá de terra em cima, areia, neve, etc. Em circunstâncias reais de uso, a coisa é completamente diferente.

A sujeira em uma arma vai se acumulando com o tempo, daí a necessidade de uma limpeza constante. Até aqui não há nenhuma novidade. Ocorre que, com o mais árduo uso do fuzil, ele trabalha com maiores temperaturas junto com essa sujeira. A cada disparo, o mecanismo de disparo faz um movimento interno que faz com que a sujeira e umidade vão, aos poucos, formem uma substância mais rígida. Isso acontece com o tempo e não de uma hora para outra. Nos combates em que a arma dá uma pane, se dá porque essa sujeira já estava nela com antecedência. Nos vídeos de internet, ela não passa por alterações de temperaturas ou movimento do mecanismo enquanto se suja.

Se olharem, verão que há um espaço aberto no lado direito da caixa da culatra por onde corre a alavanca de manejo. Essa abertura é a principal entrada de sujeira dentro da arma. Caso haja sujeira, terra ou algo que o valha, a cada disparo essa sujeira vai para dentro, impregnando a arma e se acumulando com o tempo. Manuais do fuzil, assim como a instrução, ditam que se isso acontecer, a arma deve ser limpa. Era comum o relato de fuzis que davam pane em pleno combate. A sujeira ainda poderia danificar outras peças internas da arma. E aqui entra um dado curioso sobre o AK-47. O fuzil era tão barato que saía mais barato pegar um fuzil novo do que mandar o fuzil para uma oficina de manutenção. Por exemplo, muitos países compram lotes do AK-47 para suprir as perdas operacionais e não para armar ou formar novos exércitos, porque saía mais barato fazer isso do que montar uma bancada de manutenção.

Soldado soviético com um AK-47 em treino NBC – Nuclear Biological Chemical.

Outra situação sem sentido é a costumeira comparação entre AK-47 e M16. É muito difícil comparar armas de calibres diferentes e canos diferentes porque os resultados serão diferentes em virtude de paradigmas diferentes. Entretanto, não há como escapar da tentação dessa comparação. Quando isso é feito, o M16 tem uma ampla vantagem sobre o AK-47 em virtude do alcance, da precisão, da trajetória e do poder de parada do projétil. Dentre as armas da família M16 que mais chegaria perto do AK-47 seria a M4. Trata-se de uma carabina amplamente usada atualmente e suas características balísticas são as que mais se assemelham se olharmos o alcance, precisão e poder de parada. Por ter um cano menor, a arma fica mais limitada na energia e velocidade final do projétil, chegando a números semelhantes, mas não iguais, do AK-47.

AK-47

Calibre: 7,62 x 39 mm
Comprimento total: 870 mm
Comprimento com a coronha dobrável(AKS): 645 mm
Comprimento do cano: 415 mm
Peso: 4,3 kg
Cadência de disparo: 600 dpm
Carregador: 30 cartuchos

 

Como funciona

Ao apertar o gatilho, o cão é liberado batendo no percussor. Este deflagra o cartucho, fazendo com que os gases que impelem o projétil entrem em um orifício. Ao passar por ele, os gases são dirigidos a um êmbolo situado acima do cano. Neste êmbolo tem um longo pistão que é ligado diretamente ao transportador do ferrolho. Os gases no êmbolo pressionam o pistão para trás; Ao fazer isso, pela inércia, o ferrolho é rotacionado para o lado esquerdo, fazendo com que os ressaltos estejam alinhados com as saliências da base do cano.

Ele é deslocado para trás, ao mesmo tempo em que ejeta a cápsula que estava na câmara do cano. A mola recuperadora empurra o transportador do ferrolho e pistão para frente, colocando um cartucho na câmara do cano. Neste momento, o ferrolho passa pelas saliências da base do cano, virando para o lado direito, travando o ferrolho na base do cano. Neste momento, o percussor está pronto para ser acionado novamente, reiniciando o ciclo.

 

Curiosidade

Muitos se referem ao ferrolho rotativo de 2 ressaltos como uma grande invenção soviética nas mãos de Mikhail Kalashnikov quando fez o AK-47. A bem da verdade, o ferrolho rotativo de 2 ressaltos fora inventando pelos tchecoslovacos em 1942 quando fizeram o fuzil semiautomático ZK-420S. Esse fuzil, por sua vez, tinha um ferrolho rotativo de 2 ressaltos influenciado pelo M1 Garand. O ferrolho do AK-47 é praticamente uma cópia do ferrolho do ZK-420S.

Em cima o transportador do ferrolho e ferrolho do AK-47 e embaixo o transportador do ferrolho e ferrolho do ZK-420.